O filme evoca os vínculos que os vivos têm com seus mortos e vice-versa, mas é, sobretudo uma ode à vida.

Cristèle Alves Meira nasceu há exatamente 40 anos em França, mais propriamente em Montreuil. Com raízes familiares em Trás-os-Montes, manteve sempre uma forte ligação à família “lá de baixo” mas também à cultura e às tradições da sua região.

A sinceridade que devo aos meus leitores obriga-me a confessar que conheço pessoalmente a cineasta e acredito no seu talento desde que vi uma das suas primeiras obras: “Campo de Víboras”. Essa curta metragem já revela a fundamental ligação de Cristèle à sua região natal, assim como a sua veia espiritual.

A realizadora mostrou trazer no sangue todo o sobrenatural que encantava as noites de inverno com as histórias que os mais velhos nos contavam para assustar e que surpreende o mais científico dos seres humanos. Como dizem os espanhóis, citando Cervantes ou um ditado galego (não há unanimidade de fonte): “Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay”.

Cristèle Alves Meira faz-nos acreditar em tudo, tanto através dos seus filmes como quando com ela conversamos.

A sua primeira longa-metragem chama-se “Alma Viva” e chega ao Luxemburgo a 2 de março, com um currículo brilhante: o filme foi selecionado em competição na Semana da Crítica do festival de Cannes 2022 e foi o representante português nos Óscares 2023.

A ação decorre em Trás-os-Montes. A avó, uma espécie de bruxa da aldeia, assustadora mas amada, morre durante o sono. A neta Salomé, que perde a avó pouco depois de a ter (re)encontrado, vai acolher o seu espírito, que se agarra à neta com todas as forças.

A neta, que parece ter herdado da avó a capacidade de comunicar com os mortos, vai carregar o fardo de saber mais do que os outros e de levar consigo o passado de toda uma família.

Cristèle Alves Meira assumiu, em várias entrevistas, a relação muito íntima com as histórias poderosas e misteriosas que são contadas nas aldeias transmontanas. “Histórias de outro tempo que são a matriz original, a memória arcaica da cultura portuguesa”, explica a realizadora, revelando que passou a infância a “ouvir histórias de maldições e a ver as pessoas sussurrarem esses temas, porque existe claramente um tabu em torno da bruxaria”.

O claro objetivo da luso-francesa é trazer essas crenças para o cinema, torná-las visíveis e – de uma certa forma – garantir a transmissão das histórias e tradições, tal como a avó de Salomé se preocupa em legar os seus saberes ancestrais à neta.

“A pequena Salomé acaba por ser acusada pelo povo da vila de ser bruxa por sair do quadro de menina sensata que a sociedade impõe às mulheres”, considera Cristèle que, no fundo, conta uma história de emancipação (ou empoderamento, como agora mal se traduz do inglês): Salomé ultrapassa os limites para se emancipar.

E para contar esta história sobrenatural e de mulheres, Cristèle Alves Meira adota, com originalidade, o ponto de vista da criança que vai estabelecer a ponte entre o natural e o sobrenatural.

Cristèle Alves Meira aborda ainda a questão do luto. A película evoca os vínculos que os vivos têm com seus mortos e vice-versa, mas “Alma Viva” é, sobretudo, uma ode à vida.

A opção pelo fantástico reduz o peso emocional da morte. O falecimento da avó provoca um reencontro agitado da família que permite a criação de novos laços com base em velhas rivalidades e problemas: até o funeral é um, porque a família não se entende ou porque os incêndios podem colocar os vivos em perigo.

“Alma Viva”, disse alguém, é um filme híbrido porque tem personagens entre Portugal e França, passeia-se entre o mundo visível e o invisível e entre tradição e modernidade.

Uma última menção para Lua Michel, protagonista e filha da realizadora. Cristèle Alves Meira confessou não estar a pensar nela quando escreveu o argumento, mas que, de repente, a sua filha se revelou como uma escolha óbvia. Uma revelação, em todos os sentidos da palavra. Uma revelação como aquelas que apenas as bruxas sabem interpretar.

“Alma Viva”, de Cristèle Alves Meira, com Lua Michel, Ana Padrão, Jacqueline Corado, Ester Catalão e Catherine Salée.